quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008


Hóstias, Cruzes, Água benta e afins.

Por Anne Caroline Quiangala

“This is killing us

Fighting the truth losing battle

We believe in nothing

Just hatred for each other

(…) no more, no more

This pain, must end”

(Silent wars - arch enemy)

Era uma noite de sexta feira treze de agosto, noite sombria e celestial em que eu aguardava (muito a contragosto) o grupo de oração para rezarmos o terço. Nunca fui uma devota fervorosa, mas, no entanto, sempre fui ávida pelo obscuro da fé. Percebendo isso, minha mãe, que participava dos ritos católicos de forma rigorosa e claramente obsessiva, me inseriu em certos hábitos, alegando desejar uma camuflagem perante todos, mas eu sabia, na verdade eram as minhas atitudes que o que condenava, era como se eu fosse herética. Era obrigatório participar sempre, caso contrário? Muitas coisas...

* * *

Minhas tendências naturais sempre foram contrárias às tradições ditas luminosas. Tanto que, antes de completar sete anos, meu pai levantou a voz e ameaçou queimar-me após dissertar sobre a inquisição. Tudo isso devido a minha disciplina precoce, que, somada à aversão ao símbolo máximo cristão (a cruz) faziam de mim um bom bode expiatório. A cruz simplesmente me deixava doente; qualquer contato com a mais ínfima gota que fosse de água benta tornava meu humor irritadiço, a pele coçava a ponto de ferir; Tomar a hóstia foi um como um misterioso atentado à minha vida. Sabendo disso, no dia da minha primeira comunhão, a minha irmã mais velha, Scarlett, resolveu virar freira, adquirindo assim, o meu ódio mortal.

* * *

A casa fora limpa e adornada especialmente para aquele fim, mas como os convidados demoraram resolvi escutar música; fui para o quarto recém organizado e comecei a ouvir Arch Enemy. Por hora, inebriada pela música, agitava a cabeça alucinadamente, acompanhando os guturais e os riffs minuciosos; lembrei que estava a sós em casa, o que eu me deu um gosto adorável. Permaneci batendo cabeça, girando, até que... bati a cabeça com força na imensa caixa plástica para guardar CDs; os olhos abriram, de leve, purpúreos e estáticos, devido a dor muda incalculável . Olhei a minha face no espelho, o sangue brotava da porção direita da testa e escorria junto às lágrimas no lado atingido.

Não sei dizer como ou quando se deu o desmaio, ou se ele realmente aconteceu, mas, quando despertei, estava em um local escuro, úmido e fétido, os pulsos e os tornozelos em carne viva presos por um ferro, os lábios rachados e a testa dolorida. Estava deitada sobre uma superfície gosmenta, gelada e com forte cheiro de mofo.

Minhas pupilas logo se dilataram, então pude constatar uma silhueta se aproximando, trazendo consigo uma névoa fedorenta a qual me sinto incapacitada de descrever com precisão... Imagine uma tonelada de ratazanas em decomposição... não chegou sequer à metade do caminho...

Quando a criatura falou, emitiu um timbre viscoso, como que em desuso, enferrujado.

- Bem vinda ao meu confim... Sim, você encontrou as trevas que busca desde o início da inconsciência e do controle da consciência... Está aqui a seu bel-prazer, portanto.

Estranho aquele aspecto primitivo ser tão claro e mesmo inteligente, mas eu enrijecia ao menor avanço da criatura... Não, não poderia ser um humano.

* * *

Primeiro grande ato: deitou-se sobre mim; ouvi um som retorcido, era o seu arfar monstruoso. Quanto ao corpo, este era repulsivo; Tateei a face sulcada, o corpo deformado e senti aquela pele cascuda repleta de fendas e erupções que gotejavam gosma além de furúnculos em furo que pareciam tão frios como carne congelada; cada lufada inglória adormecia um dos sentidos.

Fiquei surpresa com minha aceitação amena, o controle que se apoderou de minha mente de forma inexplicável, para não dizer, sobrenatural. Acumulado com a isenção do pavor, uma outra sensação estridente foi tomando conta de cada célula do meu corpo que, por difusão, espalhava o calor lascivo, o desejo extremado por aquele monstro que no meu caso era o salvador; não aquele inábil príncipe de cavalo branco dos contos de fadas, mas o meu temível Nosferatu que habitava a nojenta enxovia que cobria meus lábios com beijos tépidos, afagos envolventes, luxuriosos e obscenos.

Tirou a manta grosseira que o cobria, exibindo nódoas moles, gosmentas; meu corpo emergiu ao retirar minhas vestes, até que nos enlaçamos em totalidade; éramos um paradoxo, uma simetria defeituosa que, cada vez mais, se tornava indistinta.

Atraí-me esplendorosamente pelo grotesco, pela Fera[*1]

repulsiva que não era capaz de repelir, até que...

* * *

No segundo ato ele deixou cair a sua máscara densa, terrível e mortífera. A partir daquele instante eu saberia o que estava intrínseco e acabaria por retomar o mau em meu inconsciente. Meu sombrio monstro emitia tenebrosos ruídos, que não podiam encobrir o som úmido e macilento das garras que emergiam pela carne acima dos dedos; garras estas que me perfuravam repetidas vezes como vigas, mergulhando em minhas víceras e trazendo à tona o líquido da vida, que, na escuridão, não era visível. Meus olhos estavam fechados, e a dor me forçou a apertá-los ainda mais como que tentando dissipar a dor enlouquecedora.

Minha primeira reação para tentar me desvencilhar daquela mistura homogênea e colossal, foi me debater; entretanto, força descomunal dele anulava qualquer possibilidade de movimentação da minha parte.

O Desejo me forçava ao contato físico total. Logo as garras alcançaram as minhas costas; deliciando-se com a minha dor ele permitiu que eu redobrasse o corpo e o contorcesse, escapando daquela maldita dor que me afligia. Meu ódio era controverso, era ódio por mim, não por ele; Em resposta aos meus pensamentos ele me concedeu o mais perverso e violento açoite, como que desprendendo de si uma enorme carga.

De súbito abri os olhos. Resisti. Ao menos tentei. O corpo físico precisava sucumbir, mas a batalha ferrenha se estabelecia entre a Alma e a Morte...

O meu vômito sanguíneo era sugado com voracidade pela besta. Sentia em meus lábios um fluido agridoce invadir a boca... Como desejava repeli-lo... Busquei reunir ao máximo a força do meu âmago, enquanto ele se deleitava com a minha dor, enquanto a vida não falta, apesar de que estivesse fugindo... Era uma ampulheta pequena... O que está em cima vem para baixo e vice versa...

Um lampejo exibia minha infância, eu buscava o suicídio através de um copo com água... Sorri brevemente sentindo a violência em seguida. Tentei empurrá-lo, mas minha força foi neutralizada de modo imaterial. Por um segundo perpetuou o silêncio vazio e sinistro... Vislumbrei o som monótono e rigidamente imutável do órgão, as velas sendo acesas no altar com cuidado... A cruz que reneguei... Mas trazia junto ao corpo algo que não pude me desfazer: um escapulário que ganhei há muito tempo...

Ouvi um baque brusco e estrondoso; formou-se um buraco sobre as nossas cabeças por onde se infiltrava a luz da rua e exibia os nossos corpos enlaçados. Como que por milagre, criaturas semelhantes àquela que permanecia sobre mim desceram para o esgoto afastando os insetos a volta e, em seguida, retirando o meu cavalheiro brutal com violência distinta, lançando-o à Estirge[*2] negra vinda dos canos; aproveitei a deixa, me recompus com dificuldade, e, nua, busquei correr à procura de uma saída.

Os demais nosferatus me alcançaram e formaram um círculo inviolável a minha volta, circulo este que se fechava muito rapidamente.

Desejei ver a cruz, tomar o sangue, comer o corpo e nutri-me da água das águas (não menos lodacenta por isso)... Quem me encontraria em um local como esse? Um estranho medo se instalou em minha mente, o pânico. Não fui capaz ao menos de gritar sabia, no fundo o que isso ocasionaria... Eles ouviam os meus pensamentos e, em reação a eles exibiram as dentições e as faces medonhas mais mutiladas, chaguentas e cobertas por liquens, circundando-me, eu como a presa em meio a uma matilha esfomeada... Eles andavam em círculos, os dois sulcos que envolviam os olhos amarelos cujas pupilas em formato de fenda fixavam - se em minha figura, ao menor movimento do corpo trêmulo que se entregava a passos curtos à rendição total.

Deitei no chão como forma de submissão, fechei os olhos e me entreguei à morte. Cada vez mais me afastava desse mundo, embora tenha ouvido por algum tempo o balbuciar mórbido, corpulento e enegrecido:

- Nosso aspecto atordoa nobre princesinha? Nós somos as sombras, e dor é o que nos alimenta e dá prazer... Assim como Baudelaire apreciamos a “estética do feio”. Resta saber se você está apta. O que me diz? Aceita, ou regressará aos santos, às cruzes e os mantras monótonos?

Arquejei, com efeito, sob os tentáculos dispensados sobre mim, a cabeça latejando, o pulsar longínquo retornando... Mexi os dedos arraigando espírito à carne tão logo fria como que estimulada pelo golpe rasteiro em meu único pertence junto ao corpo deformado...

Todos os seres ardilosos e asquerosos se aproximaram, curvando-se sobre mim como se eu fosse um oásis no deserto; fui sentindo o corpo sendo perfurado com veemência... Sim eu aceitara o voto das sombras, passei a ser uma criança da noite, a notívaga e destroçada Bela como me chamaram

[*1]“A Bela e a Fera”, da Disney.

[*2]Rio do inferno


PS: ESSE CONTO PODE SER CONFERIDO NO SITE CONTOS DE TERROR:

http://www.contosdeterror.com.br/contos/hostias.html



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