domingo, 28 de novembro de 2010

“Rock não é só para o seu namorado!”

“Rock não é só para o seu namorado!” [1]

Por Anne Caroline Quiangala[2]

Quando você escreve, você tem esse desejo alucinado e, se você está escrevendo na perspectiva da paixão, há esse desejo alucinado de avançar, que o teu texto mobilize.

Ana Cristina Cesar

O

livro Mulheres do Rock: o rock do DF e do Entorno sob o ponto de vista feminino (Distrito Federal: Zine Oficial, Ossos do Ofício, 2010, 160 p. 21cmx15cm, R$20,00) é a compilação dos escritos autobiográficos narrados por seis mulheres cujas trajetórias de vida se confundem com a do Rock brasileiro. Essas mulheres são: Alice (baterista da Gulag), Andréa (ex-vocalista da Valhalla), Bianca (ex-guitarrista da Bulimia), Ludmila (vocalista da Estamira), Márcia (Headbanger's Attack Produções: frequentadora assídua de shows e testemunha de eventos memoráveis) e Zanny (baixista da Flammea).

Nascido de uma iniciativa do Zine Oficial (agenda de eventos underground de Brasília) e da Ossos do Ofício Confraria das artes, de encerrar com louvor o Projeto Letra de Música (como de fato aconteceu em 25 de setembro de 2010), e com o apoio da Associação Cultural e Social do Rock do DF e do Entorno (ACS-Rock), e patrocínio do Ministério da Cultura, o livro Mulheres no Rock é uma amostragem significativa do universo feminino do Rock no coração do centro-oeste brasileiro. Segundo o editor do Zine Oficial, Tomaz André, “(...) o Projeto [do livro] nasceu com mais amplitude, centrado na ideia de estimular o surgimento de novos fanzines e a literatura através da música, intercalando shows com exposições literárias, daí o lançamento do livro” (Disponível em: www.zineoficial.com.br/mulheres_do_rock.html)

A NARRATIVA

Por se tratar de autorias distintas, a principal característica do livro é a pluralidade das vozes, observável desde os referenciais escolhidos e de como se estabelecem os registros (vocabulário, expressões, gírias...). Cada narrativa é, ao seu modo, empolgante e de tamanha sinceridade testemunhal[3] que quase mostra as vísceras, tamanha a impressão de contato com a sensação bruta, isto é, tal como foi. A personalidade de cada autora se imprime nas linhas e entrelinhas pelos diferentes posicionamentos ideológicos, locais[4] e momentos. Apesar de várias das histórias se cruzarem em determinado ponto, as diferentes lentes nos proporcionam felizes incursões sob diversos planos. Além disso, os diferentes momentos da escrita são expostos, a despreocupação de padronizações rítmicas ou vocabulares aponta belamente o real enfoque: a história. Dentre as autoras, a única que conheço pessoalmente é a “Sóror[5]” Alice, mas senti a aproximação com todas as autobiografias, uma vez que o tom evoca possíveis vozes e trejeitos numa conversa informal “mano-a-mano”. Afinal, que há de mais pessoal que escrever? E escrever sobre si mesma?

À medida que acompanhamos os esforços individuais de dissecação da memória de dez a vinte anos atrás, sinto que é tecida uma relação eficaz de cumplicidade entre quem mostra e quem vê. É como se o panorama aparecesse ante nossos olhos e a narradora apontasse seu ponto de vista, como se estivéssemos numa conversa informal num lugar qualquer. No exercício de vivenciar as memórias e transcrevê-las, ora com júbilo, ora debulhando-se em lágrimas, torna-se evidente a transparência que nos chama pra dentro da obra – e, definitivamente, entramos.

CARACTERISTICAS

ü Conhecimentos anteriores: Todas as mulheres que compõem a obra descrevem pessoas, lugares e situações e tudo o mais adjacente ao rock de forma tão familiar que o conhecimento do contexto do rock underground possibilita maior fluidez na leitura. Assim, o direcionamento é bem diverso, apesar de abranger, principalmente, os interessados por música e movimentos underground.

ü Acessível: Apesar de tratar de um assunto próprio de uma tribo urbana (aqui uso uma generalização enorme porque é possível pensar cada vertente do rock como uma tribo, uma vez que têm vestimentas, ideologias, e etc. divergentes), a obra alcança qualquer público, tanto por utilizar um vocabulário, no geral, cotidiano e abusar da oralidade transcrita, como pela vontade imediata de aproximação com quem está lendo, observável na forma retórica e no clima de improviso presente nas falhas de digitação e ortografia. O que determinadas pessoas podem enxergar como “Pontos fracos”, são na verdade, parte do discurso rebelde de questionamento inquietante.

ü Interessante: Porque é uma iniciativa (apesar de majoritariamente masculina) que rompe com ideias pré-estabelecidas de que mulheres não fazem/não podem fazer rock senão estando nos bastidores (principalmente, como groupies[6]).

ü Agradável: Por serem relatos, objetivam comunicar, transmitir, e fazê-lo da forma mais sincera e passional, um processo quase alquímico de buscar a pureza dos fatos. Assim, o ritmo é de conversa e, vemos – porque nos permitem – mais que fatos, mais que Brasília, Rock ou underground; vemos pessoas, mulheres de carne e ossos que fizeram milhões de coisas, passaram por peripécias ora épicas, ora quixotescas como qualquer outra pessoa, em prol do que acreditam e, além disso: do que amam.

ü Útil: Para acadêmicos, é um bom referencial para pensar a cultura urbana contemporânea das ultimas duas décadas. Tudo está ali, os pensamentos e ideologias na/da época, vestimentas, tudo. Para fanáticos ou simpatizantes do rock ou headbangers, ver como chegamos aqui, recordar e questionar a nossa própria trajetória do rock. Aprender com as experiências e, assim, originar novos conhecimentos. Pra quem se dispõe a beber nele, o livro é uma fonte preciosa, e, sobretudo, rara.

ü Incomparável: Não me lembro de ter visto qualquer iniciativa como essa. Sabemos que há anos ocorrem festivais femininos, zines alternativas produzidas por mulheres, mas um livro sob o ponto de vista feminino parece-me inovador, sobretudo devido ao recorte tão específico.

ü Disposição Correta: a ordem das narrativas, apesar de ser arbitrariamente alfabética, não poderia ser melhor. Iniciar com a jovialidade inconstante e indecisa de Alice e encerrar com a pioneira Zanny descrevendo sua sensação de plenitude ao recordar o seu início no rock (aos nove anos) ao ouvir a música Love Gun num show da banda Kiss em companhia de sua filha Johanne, de dezessete anos! Pelo desfecho, percebemos que a autora joga a bola da perpetuação inovadora e questionadora (entranhada de do it yourself[7]) para a juventude com a qual dialoga por meio do seu relato. O rock não deve morrer nunca e isso dependerá da cada pessoa e de você; eis a mensagem. Quanto a ser gratificante, encontramos em cada uma das linhas das cento e sessenta páginas.

ü Ilustrações: A capa do livro é um olho humano esquerdo circundado por rosa que é da mesma cor da córnea que por sua vez reflete uma imagem de um palco de show de rock, do ponto de vista de quem se apresenta. Por tratar-se de uma época em que os recursos tecnológicos eram escassos, é precário o registro de som ou fotografia (e, também, o número de páginas), e portanto não há muitas imagens. Apesar de sua exigüidade, as imagens não fazem falta, pois nem deixamos de saber quem são, nem elas ocupam tudo, como nas revistas caça-níqueis. Também não se destaca uma importante verdade: os anos oitenta sob o olhar do século XXI são de pura vergonha alheia...!

Há fotos interessantes nas orelhas, de todas as pessoas que estiveram no coquetel de pré-lançamento do livro.

SENSIBILIDADE QUE ALIMENTA

Cada um dos seis textos é uma versão pessoal dos acontecimentos na cena underground, onde opiniões são expostas sem desejo de benevolência; é sério, não são pra leitora ou leitor concordarem ou discordarem, mas para beber: são experiências. Particularmente, discordo de algumas posturas e conceitos, mas acho bacana pensar o além disso, ou seja, ver o fluxo e enxergar como os acontecimentos fizeram com que elas chegassem ao que são agora.

Os relatos não são apenas representações dos olhares de outras mulheres, mas um resgate da nossa própria história com o rock. Há uma intensa identificação, afinal, é uma obra que cria diálogo, não?



Da esquerda pra direita: Alice, Ludmila, Bianca, Andréa e Zanny (Márcia não pode comparecer).

  • ALICE

“Do meu walkman não saiam essa fita [Apetite for destruction, do Guns n' roses], uma da Deborah Blando (e o vergonhalheiômetro da leitora quase explodiu agora! Gente eu tinha 11 anos!) (...)” (ALICE, 2010, p.10).

Um dos primeiros traços observáveis no capítulo “Alice” (além da empolgação master!) é sua opção por usar o espaço para uma reflexão sobre gênero: utiliza o “x” para demarcar o gênero e não perpetuar o senso comum de masculino como universalizante. Também há um importante esclarecimento da questão do aborto que é interessante pela mudança de posicionamento da própria autora. Alice se apresenta de maneira bem íntima, descrevendo sua família, e parte para a música, sem se desviar muito da vida pessoal, uma vez que a música que ouve/faz e o feminismo são partes de sua alma e mesclam-se. Hery (seu namorado há 11 anos) é integrante da sua atual banda, Gulag. O seu envolvimento com o rock ultrapassa o ser musicista underground, ela descreve sua atuação nos bastidores como integrante de diversos coletivos (como o Caga Sangue) que promoviam eventos de rock com uma ênfase tanto feminista como vegana e, não menos importante, as zines que produzia juntamente à nossa amiga Tate (baixista das extintas bandas Toda.Dor.do.Mundo e Silente, que Alice também integrou).

  • ANDRÉA

“Ser headbanger não é simplesmente optar por isso em um determinado momento da vida, é sim ser diferente de tudo o que é convencional” (ANDRÉA, 2010, p. 32).

A narrativa que se mostra mais afinada à ideologia headbanger clássica (o mesmo que TRUE ou OLD SCHOOL) é ex-vocalista da banda feminina de death metal Valhalla, Andréa. Ela vai descrevendo detalhadamente suas peripécias roqueiras desde a infância tímida, quando olhava as crianças mais velhas as quais desejava se juntar, o sentimento de desconformidade, até o momento de ouro com a Valhalla: a materialização de um sonho.

Todas as opiniões da vocalista são expostas com minúcia imperiosa e, em certos trechos, com a fúria de quem defende um ideal com a vida. Certamente, todos os espinhos da jornada até o agora (o convívio com os chamados “roqueiros de fim de semana” (ou Poser), a dificuldade de conseguir os materiais, dentre outros fatos) parecem ter feito crescer uma lealdade plena pelo mundo do rock. Em cada linha conseguimos depreender o real significado de “defender com unhas e dentes”!

  • BIANCA

“Viajar mal, dormir mal, comer mal e abrir mão de coisas pessoais pelo rock. Coisas que só se faz quando se é jovem e roqueira doidona, é super prazeroso, acredite quem puder! Isso é uma das boas lições que o rock ensina. Fazer as coisas de um jeito barato, mas nunca deixar de fazer” (BIANCA, 2010, p. 58).

A biografia com informações pessoais mais completas é a da Bianca, com direito a nome completo, data e local de nascimento. Ela começa já se desculpando pelas falhas de memória, o que é, de fato, justo, pois, lembrar com exatidão cronológica vinte anos de acontecimentos é inimaginável.

O que se enfatiza no escrever de Bianca é a importância da amizade. O rock nos proporciona um contato com diversas pessoas que têm a mesma paixão pela coisa, amizades que surgem inesperadamente quando você veste a camisa de uma banda e uma “irmã” ou “irmão” reconhece e vem prontamente falar sobre de forma cúmplice. As amizades se constroem sobre encantamentos mútuos, em situações precárias que somente o underground é capaz de proporcionar.

Bianca fala de sua banda Bulimia desde o seu começo, das bandas das quais participou, shows e CDs que ajudou a produzir, sempre elucidando seu ponto de vista, as motivações de cada atitude. Por exemplo: produzir o CD da Vernon Walters foi uma iniciativa impulsionada por 1) A crença de que era a melhor banda de Brasilia (talvez, do Brasil) e 2) A possibilidade da banda acabar e não haver registro. Ideais, paixão, mais uma vez.

A guitarrista descreve vários shows, de bandas locais e estrangeiras, lojas que vendiam camisas, fitas e tudo relacionado ao rock. Primeiro porre, primeira tatuagem, fugas de “carecas”, momento Hare Krishna e muito mais, TUDO entrelaçado ao rock, imagine!

  • LUDMILA

“(...) gostaria apenas de ser vista como alguém que integra uma banda boa, independente de haverem mulheres ou não em sua composição. O problema é que geralmente somos entendidas como pessoas que “tem” que ficar fora dos palcos e quando subimos nele viramos alvo de piadas ou de idolatria exotizadora, o que justamente nos impossibilita de ser vistas apenas como “uma boa banda”, nos obrigando realmente a fortalecer esta identidade de mulheres musicistas e de utilizá-la como “arma’” (LUDMILA, 2010, p.85).

A professora de sociologia e metaleira (sem ordenações) Ludmila, inicia belamente seu capítulo metalinguístico permeadíssimo de intertextualidades com uma epígrafe da poetisa e atriz capixaba Elisa Lucinda e, diferente das outras mulheres, que começam a contar desde a infância, sobre a família e o lugar onde cresceu, ela começa pelo meio, ou melhor, pelo fim: o telefonema-convite para escrever o tal capítulo e a pertubação oriunda da incerteza.

Quando chegamos nessa quarta parte, já fazemos ideia de quem são determinadas bandas e pessoas, o que torna mais fácil a compreensão de outros aspectos. Bacana que há uma intensa interseção com o primeiro texto, da Alice, porque são contemporâneas. O que Ludmila fala está relacionada à questão da mulher, mas fala num tom mais racional, não menos raivoso ou apaixonado por isso. Notamos que o texto é um exercício de auto-questionamento, impregnado de “eu” em cada epígrafe, em cada seleção de conteúdo e palavras.

Se há um texto que me emocionou foi o da Ludmila. Longe de ser panfletário (de forma piegas), mas não deixando de imprimir suas questões sutilmente, também utiliza o espaço para refletir sobre a questão da linguagem como elemento de exclusão. Eis um elemento político que se faz interseção entre a vida e a arte, que foi, para a autora, um ambiente que possibilitou a recusa de todos os critérios familiares e sociais que a agrediam. Daí observamos a meada que inicia o entrelaçamento das cordas metal e vida. A recusa pelo grito, pela raiva profunda e incontida.

Quando Ludmila diz “ser os ideais que a gente acredita e prega é muito mais aconchegante quando estamos com alguém“ (LUDMILA, p.79) já deixa claro um dos traços da relação vida-arte: o grau de importância de manter laços para a comunidade do heavy metal, descrita na narrativa anterior, da Bianca.

Para a autora, a luta é diária e o rock é um instrumento de luta exatamente por provocar questionamentos que possibilitam a junção de forças para mudanças (p.97). Um dos pontos altos do capítulo desta guerreira furiosa é a história da Estamira, a sobrevivência ante o caos e a tragédia. A resistência, enfim.

  • MÁRCIA

Não me recordo quando exatamente parei com eles [os moshes] em minha vida. Acho que foi quando comecei a trabalhar e entrei no mundo dos sem graça. Que horrível, mas a gente vai mudando com o tempo e perdendo as coisas que nos fazem felizes. (MÁRCIA, 2010, p. 108).

A narrativa mais emocionante, no sentido “dos corre”, é da headbanger Márcia. Diferente das outras autoras, ela tem o ponto de vista do bastidor (bilheteira, motorista das bandas) e de fã, que nos acrescenta uma perspectiva nova ligada, principalmente, a um estilo de viver divertido e permeado de beberagens homéricas, aventuras em excursões problemáticas e o melhor: shows das bandas amadas. Márcia não esconde que esteve em shows que, se nós não assistimos, azar, quem viu, viu. Ser esmagada em grades, subir em palcos gigantescos, tudo está neste capítulo

Há um subtítulo terrível chamado“Headbanger's X Carecas” que já traz em si o horror total. Essas situações de violência gratuita de nazistas-brasileiros estão em todos os textos, mas é Márcia quem descreve com detalhe os embates dramáticos. Aliás, é Márcia a dos relatos trash! O currículo de shows é invejável (tá que eu não era nascida ù.ú) tanto nacional quanto estrangeiro, mas as suas interações com a cena underground local é fantástica! Relacionada, também, com a gênese de amizades eternas de pessoas com um senso de prontidão magnífico. Graças a pessoas como Márcia (não excluindo as outras garotas) vemos a manutenção da cena roqueira.

  • ZANNY

“Este breve relato aproxima-se do que se poderia chamar biografia, ou, para ser mais precisa, autobiografia. Isso porque falar da história do metal brasiliense nos anos 80 e 90, ou pelo menos da parte que nós mulheres testemunhamos, somente nos é possível contando um pouco da nossa própria história” (ZANNY, 2010, p. 126).

Ao longo do texto, observamos uma incrível maturidade discernivel não apenas no expressar-se da baixista rarabichueba [8], Zanny, mas no como ela lidava com as situações mesmo durante a adolescência. Semelhante à vocalista da banda estadunidense The Runneways[9] - Cherrie Currie – Zanny entrou no mundo do rock aos 12 ou 13 anos cantando coisas como “I want you. I want drugs. I want rock!”. Essa banda ensaiava na chácara do Lago Sul, residencia de nada menos que Syang (ex-integrante da P.U.S, mais tarde autora do livro No Cio e participante do reality show “Casa dos artistas”).

Nesse relato há a beleza das pequenas descobertas da vida (por exemplo, o cheiro de maconha, num show do Kid Abelha, antes da “abdução” da vocalista Paula Toller).

É bacana como a vida de Zanny se entrelaça ao rock (e o contrário!). Além de toda a questão de relacionar-se na irmandade metal e da vontade de montar bandas, há o fato de que “aquele guitarrista coroa toca pra caramba, é muito bonito, mas muito esnobe. Nem olhou pra gente!”. Aquele guitarrista viria a ser no futuro o pai da minha filha, Johanne” (ZANNY, 2010, p. 132). Parece-me uma irreverente resposta ao verso “Solos de guitarra não vão me conquistar-ar” (“Como eu quero”, Kid Abelha). A partir dessa união a separação entre vida-família-metal se torna mais imprecisa: Fábio Marreco (o tal guitarrista) e Johanne são o universo particular e integram o universo ao redor.

É bem explícito que não há no discurso desse capítulo uma ideologia feminista (que a autora julga ser o outro lado da moeda), mas ela constantemente se refere a questionamentos ligados ao ser/estar da mulher no mundo metálico.

Há aventuras em excursões (e cemitérios...!), “turnês”, shows no DF e entorno, “points”, lojas, shows memoráveis, Festivais e constantes referencias às irmãs do metal que surgiram. Zanny esclarece bem o seu comportamento de afastamento das drogas e sua força para lidar com as adversidades, como a emocionante fuga após um ensaio da Sarcófago (!) em Minas Gerais. É um fim interessantíssimo, pois nos remete ao início, trazendo um dinamismo considerável à obra.

REFLEXÃO : mulher, rock e escritos femininos

A narrativa feminina, que se origina em âmbito particular com a composição de cartas e diários, culmina, no século XIX com o movimento literário denominado Gótico. Muitas vezes associado unicamente a homens como (semelhante ao heavy metal), por exemplo, o estadunidense Edgar Allan Poe, o Gótico é um gênero escrito majoritariamente por mulheres para mulheres, portanto, um gênero marginal. O cânone fez questão de passar por cima do movimento e, quando muito, seleciona autores em detrimento das autoras, como se estas não pudessem ser grandiosas.

Uma narrativa feminina tem inerentemente o medo, uma realidade presente até hoje. No Mulheres do Rock, o medo se configura, principalmente, na ameaça dos “carecas”. O interessante é que o medo é como uma máscara contra o sentimento real que é a raiva, afinal, esta não pode ser verbalizada – não por nós, mulheres. Os únicos momentos em que é permitido à mulher sentir raiva são na já taxada TPM (tensão pré-menstrual) e no momento de CIÚME, quando sente raiva DE OUTRA MULHER. O Gótico foi (e, ainda é, nas apropriações), então, uma reação à constante ameaça de uma sociedade patriarcal.

O rock underground é um espaço onde hoje, apesar de todo o boicote[10], as mulheres têm o direito de gritar a plenos pulmões o que sentem e o que realmente querem. A fúria que observamos no refrão de “Direito ao aborto” da banda brasiliense Kaos Klitoriano é o brado não apenas de ideais, mas a possibilidade de vomitar toda a raiva que não é permitida sequer desafrouxar na vida diária. Outra banda que traz todo esse ardor do descontentamento visceral é a Estamira, liderada pela Ludmila, cujo gutural pude ouvir ao vivo, durante o lançamento da coletânea Mulheres do Rock. Não importa se você não é lá tão fã de new metal... de alguma forma, o feeling VAI te tocar.

Quanto ao conceito de feminino literário (que não é bem o intuito de Mulheres do Rock, mas ajuda a entender o quão interessante o livro é para a criação de uma nova visão), trago dois excertos contraditórios da tradutora e crítica literária Ana Cristina Cesar:

“O feminino é etéreo, é o leve, é o cristalino, o diáfano, é o que fala das coisas muito leves da natureza, nuvens e riachos, alguma coisa que não “toca” direito” (Escritos no Rio. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993, p. 205).

Essa conceituação que Cesar utiliza, encaixa muito nos poemas da poetiza Emily Dickinson, uma descontinuidade entre Romantismo e Modernismo como, aliás, a própria Ana Cristina é, na escola Marginal, onde foi inserida.

“Talvez o feminino seja alguma coisa de mais violento que isso. Talvez o feminino seja mais sangue, mais ligado à terra. (...)pegando uma série de autoras mulheres, vejo que essas autoras tentam colocar esse feminino de uma maneira mais violenta (idem)”

Acredito muito mais na escrita feminina como resistência e tentativa de extirpar os temores e a raiva. E a raiva. Cesar vê a demonstração da raiva (a violência, ou seja, o que foge ao feminino etéreo) como uma masculinização, consequentemente, como algo não natural. É nesse impasse que surgem as bandas de rock com integrantes mulheres, cujas letras expressam exatamente a fúria que não poderia ser dita, geralmente berrada em um gutural aterrador.

Que fique claro, não há o que uma mulher não possa fazer!

INFORMAÇÕES

Ø O livro custa R$20,00 e está à venda nas lojas Kingdom Comics e Berlin Discos, no Conic; Filial do Rock, em Taguatinga CNB 12 (Galeria VASP, ao lado do Top Mall); Abriu Pro Rock (Gama Shopping) e FNAC (Parkshopping).

Ø Para pessoas de outros Estados que queiram comprar o livro, entrem em contato com o Zine Oficial (Tomaz: zineoficial@terra.com.br)



[1] Nesse título, tomei emprestado o trecho de uma canção da banda Bulimia chamada “Punk Rock”, porque me parece totalmente pertinente. Eis a letra: “O que te impede de lutar?/O que te impede de falar?/Pare de se esconder./Você não é pior que ninguém./Punk Rock não é só pro seu namorado./Você sempre quis tocar,/Você sempre quis andar de skate,/Você que sempre quis quis quis./Você não é um enfeite!;/Punk Rock não é só pro seu namorado./Faça o que tiver vontade./Mostre o que você pensa.Tenha a sua personalidade./Não se esconda atrás de um homem (composição: Bulimia).

[2] Graduanda em Letras Português pela Universidade de Brasília (UnB).

[3] A questão da sinceridade num texto vem sendo abordada por diversos estudiosos. Basicamente há aqueles que não veem possibilidade de uma pessoa exprimir com exatidão uma experiência/sensação porque faltaria uma densidade nas palavras, por mais que se busque a fidelidade; neste caso, “o poeta é um fingidor” (Ana Cristina Cesar). Por outro lado, há aqueles que enxergam na palavra uma gama de significações que possibilita uma expressão profunda.

[4] Um aspecto interessante é que elas são de lugares diferentes, então aparece também o ponto de vista “bairrista”.

[5] “Sóror” significa “irmã” em latim; aqui me refiro ao antigo blog da Alice, chamado Sóror Hardcore com links para downloads de músicas de bandas de/com mulheres na formação: .

[6] Significa Fãs que se relacionam com os membros de suas bandas favoritas; no mundo da música, as Groupies são bem famosas. Não se sabe ao certo quando as groupies surgiram, mas ganharam fama entre as décadas de 60 e 70, principalmente no mundo do Rock, por serem fanáticas por seus ídolos, ao ponto de fazerem sexo com eles.

[7] Em inglês, “Faça você mesmo (a)”; lema que o movimento punk levou às últimas conseqüências, e mantemos pelo denso significado que abarca.

[8] Rarabichuebas é o nome de uma banda a qual Zanny pertenceu antes da Flammea, por volta de 1994. Além dela, na formação havia também: o Lelo, Kayo John (Dark Avanger) e o rogerinho Havoc (Abhorrent). Esta é a formação clássica, houve muitas outras que não descreverei aqui por considerar desnecessario.

[9] Banda feminina da década de 1970. Impulsionaram o rock n' roll feito por mulheres.

[10] Seja pela subestimação, seja idolatria.